Bate-papo

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Quando o discurso é mais alto que a cerca

Por quantas catracas você passa todos os dias? Faz pouco tempo que fiz esta pergunta em um dos textos do blog. No entanto, é preciso dizer que a ausência de catracas não implica em inexistência de restrições de acesso. O mesmo pode ser dito sobre os muros, cercas e grades que povoam a cidade. Um monumento ofuscado por grades de ferro ou uma flor cercada por arames entrelaçados são tão inacessíveis quanto uma praça sem bancos ou um shopping center com as suas portas abertas. No documentário "Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá", o diretor Sílvio Tendler, na prática do seu cinema de colagem, traz uma cena capaz de exemplificar o que quero dizer. Enquanto um grupo de turistas estrangeiros vai em busca do exótico numa das maiores favelas do Brasil, um outro grupo, formado por moradores da favela, vai passear pela primeira vez num shopping center. Ao passo que os primeiros adentram casas alheias e especulam sem constrangimentos sobre a vida dos moradores, os segundos sofrem preconceitos até mesmo no caminho para o shopping (assista o vídeo publicado aqui). Desde o elevador social até a segregação espacial que empurra os empobrecidos para as favelas, casos de discriminação ocorrem cotidianamente, muitas vezes sem a necessidade de muros, como no caso dos jovens da periferia de Curitiba impedidos de frequentar o shopping Palladium, como descreve esta reportagem. Cada vez mais, os obstáculos físicos tornam-se obsoletos frente ao discurso dos sujeitos sociais hegemônicos.
Trecho do filme Encontro com Milton Santos
Duração aprox.: 3 min

A morte de um lugar


Tão inerte quanto as árvores da rua é este carro. As estações do ano vem e vão, os guapuruvus florescem e colorem a rua com flores amarelas e ele permanece ali, estagnado, sujeito às intempéries. Nas estiagens, os vidros empoeirados estampam desde declarações de amor a desabafos enfurecidos. Faz algumas semanas que um dos faróis dianteiros aparaceu quebrado. Fora esta pobre rotina, nada aconteceu com o carro desde que moro nesta rua, há cerca de quatro anos. Jamais vi alguém ligar o motor, aproximar-se sequer, tampouco reclamar do seu abandono. Afinal, há quantos anos este carro está esquecido neste lugar? Fiz esta pergunta a funcionários e moradores mais antigos e descobri que o velho Santana faz parte da paisagem há mais de dez anos! O curioso é que ele só é notado pelos moradores quando falta vaga para estacionar na rua, que costuma ser movimentada durante a semana. Fora esta situação, ninguém se incomoda com tamanho descaso. Nas manhãs durante as primaveras, com a rua pintada de amarelo, o andar apressado é o mesmo. Os guapuruvus, assim como o carro abandonado, estão no lugar da passagem, do desencontro. Tanto faz, portanto, se alguém decide se apropriar de um espaço público ou se os guapuruvus amanhecessem tombados. O lugar enquanto espaço da vida tem no velho Santana abandonado a sua lápide.

As cactáceas e a história de um lugar


A paisagem é característica do polígono das secas brasileiro, porém, trata-se da região de Itu, situada nos limites entre o Planalto Atlântico e a Depressão Periférica do estado de São Paulo, próxima à capital paulista. Cenários bizarros como este poderiam ser encontrados, também, em outras regiões do Brasil, como nas paredes do Pão de Açúcar (Rio de Janeiro) e até mesmo na Amazônia Central e no entorno do Pantanal Mato-grossense. São lugares que contam a história das condições físicas do passado, entre 23000 e 13000 anos antes do presente, quando o nível do mar estava a menos 100 metros que hoje e a fachada atlântica do Sul e Sudeste, banhada na época por correntes frias, sofreu um período de menos calor e maior semi-aridez, conforme explicou o geógrafo Aziz Ab´Sáber. Esta fantástica ampliação dos climas secos fez com que faixas de florestas permanecessem e se fragmentassem enquanto caatingas se estendiam. Formaram-se, então, os redutos de cactáceas que podem ser constatados hoje em subespaços extra-sertanejos. Estes lugares extraordinários, de grande importância científica, onde ocorrem cactos por entre matacões - rochas que afloram na superfície - são exceções paisagísticas que, muitas vezes, carecem de atenção e conservação.

O consumo desigual do espaço ou quando girar a catraca passa a ser um privilégio.


Antes de mais nada, peço desculpas aos leitores pelo vazio que este blog experimentou em julho. Estive envolvido com outros projetos e a falta de tempo foi implacável com as atualizações semanais do "Viaduto". A partir de agora, a periodicidade dos textos volta ao normal.

Nada melhor que retomar o blog com um chamado para que os lugares sejam acessíveis a todas as pessoas. A busca pela segurança fantasiosa tem motivado o uso de catracas e de outros esdrúxulos impeditivos ao livre acesso, criando barreiras cada vez mais difíceis de transpor, sobretudo para aqueles que são discriminados cotidianamente. Se não bastasse o irreal controle nos lugares privados, a prática de inibir o acesso vem sendo disseminada também nos espaços públicos, em especial nas universidades, lugares onde a convivência deveria ser facilitada para o bem da produção do conhecimento.

A catraca seleciona, ainda, aqueles que podem pagar pelo oneroso transporte público urbano, barrando os desempregados e os trabalhadores que não reúnem as condições materiais necessárias para consumir o espaço em iguais condições com os que podem se locomover com maior rapidez.

Por quantas catracas você passa todos os dias? A resposta pode estar diretamente relacionada com as suas possibilidades de participar do mundo, de consumir e de produzir os lugares.

Quantos lugares cabem dentro de um contêiner?

O mundo global possibilita uma circulação de mercadorias jamais vista na história da humanidade. Produtos de diversas nacionalidades estão expostos nas vitrines, muitas vezes trazendo em suas embalagens informações escritas em dois ou mais idiomas. Sem notar, usamos tênis fabricados na China, andamos em veículos produzidos na Argentina, carregamos bolsas costuradas em Taiwan. O processo mundial que proporciona o consumo de produtos multinacionais também cria uma perversa divisão internacional do trabalho. Explora-se a mão de obra barata, quando não escrava, dos países empobrecidos a troco de migalhas. Um sapato costurado a custo pífio por um indiano é exportado, recebe uma marca e, assim, tem o seu valor multiplicado exorbitantemente. Um exemplo disto está no blog "Sentir por Escrito", da amiga Juliana, num texto sobre o eventual processo de produção de uma grife mundial de sapatos femininos, a Catwalk. Outros casos também são muito bem evidenciados no excelente documentário canadense "A Corporação", onde as práticas das grandes empresas são analisadas (assista o trailer em inglês após o texto).
Os contêiners carregam consigo a vida daqueles lugares cujo papel no mundo globalizado está restrito a produzir bens de consumo a custos irrisórios, arcando com desastres sociais e ambientais diversos, em prol do consumismo desenfreado dos países ricos. Ao consumir um produto destes, nós estamos, também, participando da produção de um lugar onde, muitas vezes, sequer pisamos uma só vez.
TRAILER "THE CORPORATION" - "A Corporação"

Deserto verde

Cada vez mais lugares são invadidos pelo processo de desertificação verde causado pela insensatez das compulsivas exportações de commodities a preços módicos. As culturas de cana-de-açúcar e eucalipto são os principais emblemas da violência do poder privado no campo brasileiro, pois, além de causarem diversos desastres naturais, estas plantações, em especial a de cana, abrigam a maior parte do trabalho escravo no país, segundo recente pesquisa da Comissão Pastoral da Terra. Enquanto isso, a produção de etanol é comemorada pelo Estado brasileiro como um grande avanço no sentido de proporcionar a fabricação de biocombustíveis menos poluentes e socialmente mais justos. O discurso é construído para justificar o avanço irresponsável da cana-de-açúcar sobre os solos mais férteis do país, como a terra roxa, e, também, em direção aos resquícios dos biomas ainda conservados do país. O mesmo ocorre com as plantações de eucalipto, que devastam as florestas tropicais e apropriam-se de extensas áreas, impossibilitando a diversidade de outras formas de vida nestes ambientes. Incentiva-se a produção de etanol para movimentar as insustentáveis frotas de veículos particulares que tornam a vida nas grandes cidades quase impraticável. Em suma, as ações hegemônicas engendradas nos grandes centros urbanos determinam os usos que ocorrem no espaço agrário brasileiro e, assim, os lugares são produzidos sob uma lógica imposta, alheia à principal finalidade da terra como celeiro da vida, marginalizando, portanto, aqueles que insistem em produzir o alimento que chega às nossas mesas.

Foto: Roberto Vinicius

Trabalhadores rurais manifestam o seu descontentamento com relação ao avanço gradual das plantações de eucalipto que se apropriam das áreas que seriam melhor aproveitadas para a produção de alimentos. Esta cultura é responsável por dizimar a biodiversidade das áreas antes florestadas e recebe, absurdamente, a denominação de "reflorestamento".

O emaranhar dos lugares

O cruzamento dos fios denuncia o emaranhar dos lugares que, cada vez mais, estão conectados uns aos outros. O apertar do interruptor de luz é capaz de gerar impactos em lugares longínquos. A energia elétrica permite acessar outros lugares por meio da televisão e do computador. As palavras deste blog perdem-se na imensidão de uma rede de computadores e podem ser lidas em diferentes partes do mundo. Os mais diversos fluxos de pessoas, mercadorias, dinheiro, enfim, formam redes articuladas, verdadeiras constelações de pontos ligados entre si, numa teia global de ações humanas. Contudo, há lugares onde estas redes insistem em não chegar. No Brasil, mesmo no estado mais rico da federação, São Paulo, há pedaços do território desprovidos de energia elétrica, estradas, telefone, saneamento básico, educação, ou seja, lugares desligados do mundo, espaços opacos. Nestes lugares, onde os fios que se cruzam são apenas os de varais, vive uma população bem maior do que a da cidade de São Paulo. Apenas os que não têm luz em casa somam mais de 12 milhões de brasileiros, segundo o IBGE (2000). É evidente, portanto, que a tal globalização inclui lugares selecionados enquanto exclui perversamente os demais. Enquanto isso, uma outra rede, a dos excluídos, vai sendo arquitetada a partir dos interstícios e, com ela, nasce uma outra globalização fundamentada na força dos lugares marginalizados.

Um edifício no lugar do campinho de futebol

Foto: Jair Ribbeiro

O campinho de futebol deu lugar a um edifício de treze andares e, assim, o tradicional jogo das tardes de domingo deixou de ser. Havia tantos times, todos devidamente uniformizados, que foi preciso organizar um campeonato entre as ruas do bairro. Do barranco na lateral do campo assistia-se a partida enquanto discutia-se o cotidiano do lugar. Desde a morte do campinho, o bar da esquina assumiu o papel de ponto de encontro, com a desvantagem que ali é preciso gastar algum dinheiro para poder conversar com os amigos e assistir a partida de futebol na televisão. Alguns ainda aparecem com os antigos uniformes dos times de futebol das ruas, tentanto, talvez, preservar alguma rivalidade. Porém, já são muitos aqueles que ostentam as camisas dos clubes de futebol que duelam em jogos televisionados nas tardes de domingo. Quando o dinheiro dá, a turma toda vai até o Pacaembu ver alguma partida. Outras vezes, faz uma vaquinha para alugar alguma quadra de cimento durante uma hora. Porém, na maior parte do tempo eles ficam ali, sentados ao redor da mesa de ferro do bar, saudosistas, bebendo cerveja e falando sobre as antigas partidas de futebol que aconteciam no campinho do bairro. Assim, vão envelhecendo as testemunhas de um outro lugar que existiu no bairro do presente.

Campo de futebol do bairro do Tucuruvi, na cidade de São Paulo, na década de 1960, onde hoje encontra-se a estação Tucuruvi do metrô. Acervo de Alfredo Dias Jr.

Níveis sociais


A foto de autoria de Cassimano evidencia como os lugares são selecionados na cidade, produzindo o espaço. Já tratamos brevemente sobre isto no "post" sobre gentrificação. Há quem aplauda aqueles que moram bem às custas dos que são condenados a viver em lugares propensos a inundações, erosões e, se não bastasse, desprovidos de infra-estruturas urbanas elementares. Enquanto o morador do prédio reclama da rua esburacada, o habitante da favela queixa-se, inutilmente, da falta de pavimentação no bairro todo. A perversidade produz os lugares e, assim, quando a favela ocupar o lugar provável da reprodução do capital, os seus respectivos habitantes serão expulsos pelo Estado e ali serão erguidos edifícios e contruídas ruas pavimentadas, distribuição de água tratada, enfim, tudo aquilo que era negado àqueles que, contraditoriamente , são recrutados para trabalhar na construção destes novos lugares e habitam os territórios ainda desinteressantes ao mercado imobiliário.

Ouvidos urbanos

foto: rtomazela

Eu pedi aos falantes alunos da oitava série que ficassem em silêncio por apenas um minuto. Do alto da Pedra Grande, no Parque da Cantareira, a paisagem da cidade de São Paulo perdia-se no horizonte. Estávamos ali, eu e os alunos, calados, sentados sob uma rocha granítica e rodeados pela mata atlântica. Uns olhavam desesperadamente o relógio, outros estavam com os olhos fechados quando, enfim, o minuto acabou. Então, o que vocês ouviram, perguntei a eles. A resposta da maioria foi enfática: nada!

O cantar dos pássaros, o sopro do vento chacoalhando as árvores não eram audíveis para a maioria dos alunos acostumada a perceber cotidianamente o barulho da cidade. Contei-lhes que era possível, inclusive, ouvir o ecoar distante da cidade, algo parecido com o som de uma geladeira, fruto da mistura dos barulhos urbanos. Curiosos, desta vez foram os alunos que tomaram a iniciativa da mudez. Ficaram ali, olhando fixamente a cidade, ouvindo sons roubados tão cedo e devolvidos por alguns instantes em outro lugar.

foto: thi prud

Sobre musseques e arranha-céus na paisagem de Luanda, capital de Angola


Havia onze anos desde o meu retorno de Luanda quando a sangrenta guerra civil angolana chegou ao fim com o assassinato de Jonas Savimbi, líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), ocorrido no dia 22 de fevereiro de 2002 na província de Moxico. Quando criança, fui testemunha dos vôos rasantes dos "MIG" russos sobre a cidade, dos mutilados pelas minas terrestres "zungando" pelas ruas e de outros fatos igualmente detestáveis que misturavam-se, contraditoriamente, com a simpatia do povo, com a rica cultura angolana, enfim, com o país encantador que inspirou as palavras de Agostinho Neto e Onjaki, entre outros escritores angolanos. Afinal, a guerra era um triste episódio no contexto de um lugar repleto de bons ensinamentos.

Com o término da extensa guerra civil, a paz, finalmente, seria algo tangível no cotidiano do povo angolano. Entretanto, o sangue derramado pelos conflitos bélicos deu lugar às mortes causadas pela perversidade do capital. Uma nova guerra iniciou-se nas ruas de Luanda e em outros pontos de Angola, desta vez motivada pelo crescente abandono dos empobrecidos, intensificado desde o fim da guerra fria e reforçado com a entrada maciça de capital estrangeiro, sob a égide de uma paz inventada para atrair investimentos privados e servir, sobretudo, à reprodução inconsequente do capital.

Enquanto a quase totalidade da população está condenada a viver em musseques miseráveis - casas precárias desprovidas de infraestruturas básicas - sem energia elétrica, carentes de saneamento básico, alimentação, saúde, enfim, destituídos das condições elementares de sobrevivência, arranha-céus são erguidos exaustivamente na vizinhança, evidenciando a expressiva quantidade de dinheiro em circulação no país.
O excelente blog Safú de Makela publicou recentemente uma análise sobre as críticas dirigidas pelo Jornal de Angola ao músico irlandês e ativista Bob Geldof após declarações deste denunciando as desigualdades sociais às quais o povo angolano está submetido enquanto uma parcela pífia da população desfruta de condições materiais sofisticadas.

O discurso que referenda a vizinhança entre musseques e arranha-céus é o mesmo utilizado nos demais países empobrecidos do mundo e, quiçá, provém dos mesmos grupos econômicos atuantes nestes. Os lugares são selecionados e apropriados pelo capital segundo uma lógica atroz, tão letal quanto as mais cruéis guerras armadas. Angola vive hoje uma guerra silenciosa, camuflada pelo discurso apaziguador das elites e fundada na globalização que está em curso no atual momento histórico. "Bwamoxi twondo banga ibaku ya mbote" - juntos, faremos criações boas - no idioma falado em boa parte dos musseques, no lugar onde reside a esperança da invenção de um outro mundo, de uma outra globalização, conforme nos ensinou Milton Santos.

Aglomeração de carros na Avenida dos Combatentes, em Luanda. Cada vez mais automóveis particulares ocupam as ruas da cidade, denunciando a crescente produção de riqueza vivenciada no país, em especial no pós-guerra civil angolana. O transporte público - vans azuis denomindas "candongas" - é precário e irregular.

Gentrificação

Foto: Thomas Hobbs
O que faz um edifício ser condenado ao abandono numa cidade onde faltam habitações para uma enorme e crescente parcela da população? O centro velho de São Paulo, onde está localizado este prédio, é o destino da gente que foi despejada nas periferias da cidade e que enfrenta 4 ou mais horas a bordo de um péssimo e caro transporte público para chegar ao trabalho. Além de distantes, estas periferias estão localizadas nas terras desinteressantes para o mercado imobiliário, isto é, nas planícies de inundação de rios que sofrem com sucessivos alagamentos ou em vertentes sujeitas a intensos processos erosivos. Enquanto isso, prédios desocupados povoam a paisagem do centro urbano e o Estado lança mão de políticas públicas de "revitalização", impedindo os empobrecidos de ocuparem estes edifícios e incentivando a instalação de grandes empresas e objetos de luxo no lugar. Pontes estaiadas, túneis e viadutos são construídos para dar fluidez aos carros ao passo que o transporte público, aquele mesmo que cumpre a função de levar a gente das periferias para o centro, torna-se cada vez mais lento. Está instalada, portanto, a política da gentrificação - aquela onde as pessoas são expulsas das áreas centrais em prol do capital privado - e os engarrafamentos dos carros surgem como tema novo quando, na verdade, os empobrecidos das periferias sofrem há décadas com a perversidade dos que planejam a cidade exclusivamente para atender aos interesses dos agentes sociais hegemônicos.

O bairro paulistano da Lapa

Foto: things.I.like.in.SP
Ao andar pelas ruas de um bairro é possível perceber na paisagem testemunhas de diversos tempos. O moderno terminal de ônibus ao lado de trilhos de trem que remetem ao começo da história do lugar, casas que colecionam algumas décadas avizinhando-se de prédios de vidro, ou, ainda, um antigo mercado municipal próximo a imponentes supermercados coloridos.

Apresentamos o bairro da Lapa, em São Paulo, através de um bom documentário produzido em 2005 por Henrique Rodriguez e Carla Monteiro. No filme, a história da vida dos habitantes mistura-se, através das lembranças, com a produção do bairro da Lapa. Os meandros do Rio Tietê e os trilhos da "São Paulo Railway" permeiam a história do lugar. O filme dura, aproximadamente, 10 minutos.
Foto: Elton Melo

Documentário: LAPA, SP

O barulho dos pássaros e o som dos helicópteros

Um, dois, três, quatro helicópteros sobrevoam o que antes era apenas uma tranqüila rua da zona norte da cidade de São Paulo. Um a um, os canais da televisão divulgam incansavelmente as imagens da rua vizinha. Cada vez mais gente chega e não apenas passa pela rua como antes; fica ali, parada, como espectadora dos mesmos acontecimentos que podem ser observados em tempo real por alguém que está a milhares de quilômetros dali, talvez em Manaus ou em Tóquio.

De repente, um lugar improvável pode ser condenado ao centro das atenções do mundo. Você, então, poderá despertar com o barulho de helicópteros , tomar café da manhã assistindo a sua vizinhança ao vivo na televisão e, se tiver sorte, aparecer em rede nacional saindo de casa para mais um dia de trabalho.

No caminho, durante os intervalos das reportagens veiculadas diretamente da sua vizinhança, o rádio anunciará os melhores trajetos a seguir para fugir dos engarrafamentos. Se preferir, há uma estação dedicada exclusivamente ao trânsito. Você pode, então, com a ajuda dos repórteres que observam a cidade do alto dos helicópteros, cortar caminho por aquela rua onde você costumava jogar bola quando criança, contornar a praça arborizada e imaginar como seria conveniente se ali fosse construída uma larga avenida, e, por fim, virar à esquerda e deparar-se com o próximo congestionamento. A sua vida não seria a mesma sem a ajuda dos helicópteros, certo? Claro, contanto que eles não incomodem o seu sono...

Finalmente, depois de algumas horas perdidas nas ruas da cidade, você chega ao seu local de trabalho. É hora de ligar o computador, pegar um café e concentrar-se para preparar aquele relatório que deve ser entregue ainda pela manhã. O cursor já está piscando insistentemente na tela branca do monitor, cada vez mais rápido, parecendo suplicar por algumas palavras, quando, ao toque das primeiras teclas, você é interrompido por um barulho ensurdecedor. A mesa treme, o café transborda, as idéias fogem, alguém grita "terremoto!" enquanto você observa no prédio ao lado um bacana chegar a bordo do seu helicóptero.

Um dia como esse não é incomum em São Paulo. Ao contrário do que acontece com o som dos pássaros, desde cedo os nossos ouvidos são acostumados ao barulho dos helicópteros que sobrevoam insistentemente a cidade em busca de fluidez para os bacanas e de sensacionalismo para os que não podem perder o horário do ônibus. A capital paulista tem a segunda maior frota de helicópteros do mundo, a maior parte dela nas mãos de pessoas físicas, ao contrário de Nova York, a primeira da lista, onde estas aeronaves são de empresas.

Estamos cada vez mais sujeitos a ter um heliponto como vizinho de janela. Os atuais prédios de vidro são construídos já com a perspectiva de receber estas aeronaves em seu topo como forma de atrair os agentes sociais hegemônicos para a compra dos seus caríssimos metros quadrados. Ganham-se tempo e dinheiro e exporta-se barulho para os que não têm a mesma sorte. A cidade que não tolera a favela - não pela inaceitável miséria, mas, lamentavelmente, pela suposta degradação da paisagem - é a mesma que aceita de boca calada o escândalo incômodo daqueles que desenham ao seu gosto o lugar.


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Os meandros da usina hidrelétrica no Rio Ribeira de Iguape

O significado dos meandros do Rio Ribeira de Iguape não está restrito apenas ao ziguezaque das suas volumosas águas, mas, também, expressa o enredo das contradições materializadas no espaço. Este é o maior e mais importante rio paulista que flui diretamente para o oceano, espraiando-se ao longo de aproximadamente 470 km desde as cercanias da Região Metropolitana de Curitiba até o complexo estuarino-lagunar de Cananéia-Iguape, percorrendo as áreas mais conservadas que restam no estado de São Paulo.

No interior deste resquício de vegetação conservada sobrevivem dezenas de comunidades tradicionais - quilombolas, indígenas e caiçaras - que nas últimas décadas assistiram o seu lugar transformar-se em parque e, junto com ele, viram surgir uma coleção de regras que, alega o Estado, visa manter os sistemas naturais protegidos. No fim das contas, as comunidades tradicionais pagam o preço da devastação desenfreada assistida no país e, sobretudo, em São Paulo impulsionada pela geração de riqueza que beneficia somente alguns poucos abastados. Os que antes viviam da floresta agora são proibidos de caçar, de coletar alimento e de plantar a sua pequena roça. A política do Estado brasileiro condena aqueles que souberam viver em harmonia com a natureza e beneficia os sujeitos sociais hegemônicos que desfrutam à beira-mar a riqueza conquistada com o saque dos recursos naturais.

Não é novidade, pois, a lógica que está por trás da construção de uma usina hidrelétrica no Rio Ribeira de Iguape pelo grupo Votorantim. Atendendo a intencionalidade de beneficiar alumínio privado às custas de recursos naturais públicos, o discurso que valida a obra é um velho conhecido daqueles que viram o bolo crescer sem receber sequer uma migalha. Com as suas casas sem luz, na escuridão imposta pelas leis ambientais que não permitem a instalação da rede de energia em unidades de conservação, as comunidades tradicionais mais uma vez são vítimas da lógica perversa do capital privado. Os desastrosos impactos ambientais gerados por uma obra que atende aos interesses de poucos irão condenar o único rio ainda conservado do estado e, junto com ele, uma série de comunidades ribeirinhas a jusante da usina.

Neste cenário, merece destaque o papel do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA - em prol do setor privado. Há algumas semanas, o IBAMA proibiu a visitação ao Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira - PETAR -, vizinho ao Rio Ribeira de Iguape, sob o argumento da falta de um Plano de Manejo e dos severos impactos ambientais causados nas cavernas do lugar pela visitação pública, afetando, com isso, os habitantes das comunidades tradicionais que trabalham como monitores. Estes problemas são conhecidos há algum tempo, inclusive são analisados em diversos trabalhos científicos. Além disso, as práticas de visitação pública no PETAR não diferem daquelas que ocorrem em uma série de outras unidades de conservação em todo o Brasil, fato que valida a mesma ação do IBAMA também em outros parques, o que não ocorre. No entanto, dias após a proibição em tela, o mesmo IBAMA mostra-se favorável a construção da usina hidrelétrica no Rio Ribeira de Iguape pelo Grupo Votorantim, atitude, no mínimo, controversa.

Houve quem tentasse conferir a qualidade de Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental ao Rio Ribeira de Iguape com a esperança de impedir intervenções desastrosas como esta da usina. Contudo, após o tema ser aprovado pela Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, o governador José Serra vetou o projeto de lei.

A quem interessa a conservação dos recursos naturais? Seria uma pergunta óbvia aos desatentos. É comum ouvir dizer que a degradação ambiental é consequência, muitas vezes, da falta de planejamento. Pois é o planejamento o principal instrumento de intervenção do capital privado, mesmo onde ele parece inexistir. A ideologia que devastou o interior do estado de São Paulo para plantar cana-de-açúcar é a mesma que hoje apóia ações de "responsabilidade" social e ambiental e, amanhã, será a mesma que não hesitará em colocar tudo abaixo para gerar riqueza.

A cidade e o tempo



O dia vai embora junto com os trabalhadores na cidade de São Paulo. A despedida do sol pouco é notada por aqueles que observam o movimento dos ônibus e o acender das luzes do sinal. A maciça migração pendular tem nas periferias o seu destino principal e, dia a dia, constrói a cidade através de seus caminhos, cujo principal desafio é fazer chegar de longe as massas produtoras, porém pouco consumidoras, de riqueza.

De repente, um outro lugar: a idéia do blog

O retorno de uma longa viagem quase sempre descortina mudanças, das mais sutis às evidentes, na paisagem do lugar da vida cotidiana. Às vezes, imersos na rotina caótica da cidade grande, não somos capazes de perceber transformações na paisagem e no acontecer do nosso entorno. De repente, como um tapa na cara, surge algo estranho bem ali, no caminho de todos os dias.



O caminho do passado transformou-se em rua para, mais tarde, virar avenida e, quem sabe, um dia esta possa dar lugar a uma praça arborizada. A casa colonial abriga hoje uma deliciosa pizzaria e conta silenciosamente a história do lugar. Na paisagem predominantemente plana, um resto de relevo que resistiu com mais vigor à erosão testemunha a paisagem de tempos pretéritos. "O espaço é uma acumulação de tempos", ensinou o Geógrafo Milton Santos.


Passado, presente e futuro confundem-se no lugar. Perceber esta sucessão de tempos materializada no espaço e na paisagem é o que pretendemos com este blog. Esta é, talvez, uma tentativa de aguçar o olhar para as mudanças do lugar onde vivemos. Não é, pois, nem quer ser, a narrativa cronológica dos fatos de um dado lugar. A nossa intenção, minha e, espero, dos leitores que por aqui passarem, é tentar compreender como nós, cidadãos, participamos do processo de construção dos lugares em que vivemos e, por que não, até mesmo dos lugares onde sequer pisamos uma só vez.